Nós somos um pouco complicados, temos de admitir. A humildade fica-nos bem. Somos complicados, não custa reconhecer. Por outras palavras – porventura mais modernas – não somos ‘friendly’. Se fôssemos um aparelho electrónico, quem nos comprasse havia de estar mais de uma hora para nos ligar.
Vem isto a propósito do debate intenso em torno da hipótese de criminalizar um crime. Isto não é para qualquer um. Temos um maravilhoso sortido de legislação penal, mas parece que é preciso mais uma lei, neste caso para a vacinação indevida. É disto que se trata. Há quem entenda ser necessário fazer uma lei específica para este tema em concreto. A proposta entra no Parlamento, vai a debate, é votada, em caso de aprovação segue para o Presidente da República, que a promulga ou veta, se a escolha for pela primeira segue então para publicação, momento em que entrará em vigor. Com alguma sorte, quando a lei entrasse em vigor já não se verificavam os crimes que lhe tinham dado azo, na medida em que estava concluído o processo de vacinação e já nem sequer existia pandemia.
Ora bem, a vacinação é um acto público, pelo que qualquer pessoa com a responsabilidade de autorizar a vacinação de alguém está sempre a representar o Estado, entrando liminarmente e sem qualquer sombra de dúvida na categoria de seu funcionário. Assim, dar uma vacina a quem não tem direito, configura sem grande ginástica uma situação de abuso de poder. No caso de ser alguém sem esse poder a facilitar a dose, nesse caso a discussão também é curta porque se trata de um furto.Há mais crimes, graças ao tal sortido de legislação penal. Parece aquelas caixas de chocolates que se abre e uau, chocolates a dar com um pau, todos diferentes. Acabamos por ter uns preferidos, mas há para todos os gostos.
Nos casos em discussão, nem era necessário uma interpretação lata de matéria penal, que sempre se deve evitar. Como se diz em Cascais, “o que seria!?”. Mas não é necessário. Cabem perfeitamente.
Esta solução – de recorrer ao notável ordenamento jurídico português – tem ainda a vantagem de se aplicar aos casos já conhecidos de abusos. Uma lei nova, como manda a lei, jamais poderia ser retroactiva. No limite, até ao dia da entrada em vigor da nova lei, era aproveitar para vacinar familiares e amigos, porque pelos vistos não havia qualquer crime previsto para aquele acto. Era ver as sobras a irem sozinhas ter aos braços certos.
A nossa história é outra, porém. Estamos numa grande discussão jurídica, um partido propõe uma lei, o chefe do Governo diz que já há leis, mas assim sem grande confiança – parece estar mais a responder à oposição – entretanto sai a notícia de que os casos já estão a ser investigados, prova de que o chefe de Governo ainda risca qualquer coisa. Sucede que, com a tenda armada, qualquer advogado conseguirá, sem grande mestria, safar o seu cliente e talvez até conseguir ser vacinado pela porta do cavalo com sobras. Bastará ao causídico levantar em Tribunal as dúvidas que foram levantadas em praça pública. Não é bem um vazio legal, é uma espécie de meio cheio. Acontece que, em matéria penal, a dúvida pesa bastante.
Era de toda a conveniência que nos tornássemos um pouco mais expeditos. Não se afigura lógica a necessidade de criar várias leis sobre o mesmo tipo de crime, agora em função do seu objecto. Neste debate, basta substituir a vacina por outra coisa qualquer, para se concluir, com imensa tranquilidade, que se abusou de um poder para benefício próprio.
É a primeira vez que se administram vacinas contra a Covid-19 em Portugal, é verdade, mas não quero acreditar que seja a primeira vez que alguém, com responsabilidades públicas, toma uma decisão em benefício próprio. Se eu estivesse no Governo, era bem capaz de desviar uns milhões para o meu bolso, mas uns milhões de bitcoins. Estou a vê-los – da popa de um barco na Córsega – a discutir que era preciso criar-se uma lei de corrupção com criptomoedas.
Agora um bónus para quem chegou até aqui, no âmbito do mesmo tema. O Braga cumpriu ontem (quinta-feira) um jogo à porta fechada. Foi condenado pela Liga e cumpriu ontem. Não pôde ter público no seu estádio. Vai fazer um ano que não se pode assistir aos jogos nos estádios, mas um clube de futebol, que já não podia ter público no seu estádio, cumpriu ontem o castigo de não ter público no seu estádio. Público esse que já não podia ir ao estádio. Mas assim não pôde ainda mais. Não pôde ao quadrado. É que não pôde mesmo. Agora imagine-se o desgosto, para quem já não podia ter público no seu estádio, ao saber que não vai poder ter público no seu estádio. É como… sei lá, é como se não pudesse ter o público no seu estádio.
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